O médico veterinário e a celíaca

Em uma oficina de trabalho na cidade de Campo Grande num determinado momento das atividades o grupo foi chamado a fazer reflexões sobre o tema do Direito Humano à Alimentação Adequada.

No momento das apresentações conheci duas histórias de vida que muito me emocionou e encantou.
A primeira história foi de um professor aposentado de medicina veterinária da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul que no momento de sua fala explanou a sua ligação com a questão da violação dos direitos humanos à alimentação com a sua profissão.

A princípio não consegui fazer nenhuma relação. Mas aí quando o homem começa a contar não sabia se chorava ou sorria. Só sei que foi de uma emoção fora do comum.

Ele começa o relato dizendo que é o quarto filho de um casal de agricultores pobres. Quando ele nasceu os três irmãos mais velhos já haviam morrido pois a maioria deles não sobreviveu aos primeiros dias, outros aos poucos meses de vida.
Quando ele nasceu o seu pai fizera uma promessa: se este não vingar eu me separo da minha mulher e irei devolvê-la a sua família pois a culpa é dela que não tem leite suficiente para amamentar o próprio filho.

E o leite naquela família pobre era o único alimento para o recém-nascido.
Assim quando do seu nascimento o dono da fazenda em que seus pais eram empregados deu a família uma égua que havia parido há pouco tempo e com o leite desta égua ele foi alimentado nos seus primeiros meses. Logo depois seu pai ganhou de um vizinho uma cabra que foi a sua segunda mãe de leite.

Já com quase dois anos seu pai conseguiu comprar uma vaca que foi a sua terceira mãe de leite.

Assim ele no seu relato explicou:
- Devo a minha vida e considero também como minhas mães três animais: uma égua, uma cabra e uma vaca. Por isso resolvi estudar e ser médico veterinário para poder cuidar dos animais e retribuir a eles o dom da minha vida.

E ele terminou a fala dizendo:
- Depois de quase seis meses sem participar de nada por causa de  um enfarto e um acidente vascular cerebral esta que é a minha primeira saída de casa para participar de um seminário  estou aqui discutindo como podemos nos mobilizar para combate a fome e impedir a violação do Direito Humano à Alimentação. Que pelo fato de não ter tido este direito a minha vida quase não existia.

Em seguida fala uma nutricionista que é representante de uma associação de defesa da exigibilidade dos direitos dos portadores de doença celíaca*. O seu envolvimento com a causa foi quando descobriu que uma das suas filhas possui esta doença.
Depois de anos trabalhando na luta pelos direitos dos celíacos ela se depara com uma situação inusitada. Sua filha resolveu participar de uma competição de ginástica olímpica. Depois de quase seis meses de treino é chegada a hora de sua participação no campeonato brasileiro da modalidade.

No momento da inscrição da garota a mãe teve que preencher diversos formulários tais como autorização para a filha viajar, informações pessoais e etc.
Eis aí o momento que de se transformar em mais uma questão burocrática quase deixa em vão os seis meses de treinamento da menina.

Em um dos formulários a pergunta: a atleta possui alguma patologia? Qual?
Sem se questionar a mãe rapidamente responde: - Sim. Celíaca.

A treinadora ao ver isso se espanta e comenta:

- Sugiro a senhora retirar esta informação.

E ela indaga?
- Mas porque eu tiraria? Se minha filha é realmente celíaca e isso em nada compromete o treino dela e a participação dela em um campeonato? O problema dela é de ordem alimentar apenas e ela tem plena consciência disso.

- Se esta ficha chegar na Confederação desta forma ela não poderá participar pois a inscrição dela não será aceita.
A filha atônita ao lado da mãe entra em desespero e implora chorando:

- Mãe, por favor, retire esta informação. De que adiantou os meus seis meses de treino pesado? Eu me machuquei, busquei me superar diante dos desafios de um treinamento. E agora não ir ao campeonato?
Neste momento o sentimento de mãe fala mais alto do que o de militante de uma causa em ela resolve subtrair a informação. Só assim a inscrição da garota foi aceita.

Terminado o campeonato o dever de militante novamente entra em cena e aquela senhora que luta e defende uma causa, reinicia o seu papel de mobilizadora social e estava prestes a ser recebida pelo Ministro dos Esportes para garantir a todas as pessoas celíacas o direito de participar de competições esportivas.
Quando a senhora termina o seu relato a sala ficou em silêncio e teve início a seguinte indagação: se uma pessoa consciente dos seus deveres, do seu papel de cidadã e defensora de uma causa, apropriada com o tema; por conta de uma intolerância de uma confederação esportiva teve que se calar; como um cidadão comum que vive em situação de vulnerabilidade social que muitas vezes não conhece os seus reais direitos tem condições de lutar por melhoria de vida e para impedir que seus direitos sejam respeitados?

E aí a conclusão do grupo foi: somente a partir de um processo formativo que trabalhe uma educação libertadora e voltada aos princípios da cidadania que estas realidades e os desafios das violações de direitos como o da alimentação poderão ser superados.
A cada dia nestas andanças pelo Brasil me deparo com situações como estas duas do veterinário e da celíaca. Duas histórias de vida e superação, de lutas e conquistas.

*Doença Celíaca é a Intolerância permanente ao glúten.

Comentários

Marcelo Torres disse…
Que história legal, Timbó, essa do médico veterinário...
Inaldo Marinho Junior disse…
Muito bom esse texto!
São experiências incríveis!
Sucesso!
Mariana disse…
Muito boas as histórias do veterinário e da mãe celíaca...nessas horas, de encontro com as pessoas de carne e osso, é que toda a nossa militância ganha sentido.
Adorei falar com vc...seguimos na luta!
bjos

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